10 de abril de 2011

SOBRE A TRAGÉDIA DE REALENGO.

Em meio a consternação geral com a tragédia ocorrida no dia 7 em Realengo em que como dirigente sindical tivemos tarefas de solidariedade e denúncia sobre o descaso das "autoridades" para com a educação, posto a carta abaixo da professora Maíra Baczinski, de Niterói, que recebi por e.mail, e que em alguma medida reflete um sentimento que perpassa toda categoria.

"Tiros em Realengo.

Hoje, dia 7 de abril, a sensação que eu tive ao chegar na escola em
que trabalho às 7h da manhã era de que o dia seria longo. Ao longo da
manhã, inúmeras confusões, brigas, tumultos me fizeram achar que os
“demônios” estavam soltos. Mal sabia eu o que acontecia em outra
escola, não muito longe dali, do outro lado da cidade. Durante o
intervalo, escutei de uma funcionaria da escola que tinha acontecido
um acidente em uma escola em Realengo. Mas só pude realmente me
interar das noticias quando cheguei em casa.

Impossível descrever com palavras tudo que passou pela minha mente.
Sensações confusas, tristeza, muita tristeza, cansaço, e também
revolta, desilusão, desespero, solidão, agonia. Desconsolo, solidão.
Eu sozinha acompanhava aos prantos o noticiário local que dava plantão
sobre as ultimas informações ao vivo do lugar.

A primeira sensação era que poderia ter sido comigo. Poderia ter
acontecido ainda agora, na escola em que eu estava. Poderia ter sido
com o Andrei, um menino levado da 603 que quase tomou suspensão porque
bateu num coleguinha da turma. Poderia ter sido com a 802, uma turma
que eu gosto muito, cheia de alunos inteligentes e participativos, que
provocam discussões e questionamentos interessantes.

Poderia ter acontecido com outros colegas meus, amigos da faculdade ou
de profissão, que estão diariamente enfrentando a realidade escolar,
mesmo com todas as dificuldades, salários baixos, escolas longes,
falta de pilot pra escrever no quadro, falta de livro para os alunos,
alunos desinteressados, analfabetos funcionais, agressivos e mal
educados.

Não estou querendo colocar a culpa nos alunos não. Mas eles
infelizmente estão chegando assim na escola. Não conhecem a palavra
respeito. Conhecem muitos palavrões, xingamentos, adoram provocar uns
aos outros, xingar a mãe e o pai alheio, ou falar que alguém falou
sobre o pai de outro. Isso é tão comum que as vezes nem nos
incomodamos mais com esses pequenos incidentes, esses “disse-me-disse”
que perturbam a paz e provoca o que os especialistas chamam de bulling
e a meu ver é fofoca mesmo, essa coisa de controlar a vida alheia e
provocar até tirar o outro do sério.

Hoje, no terceiro tempo de aula, por volta das 9h, dois alunos
começaram a se provocar no meio da aula. Eu pedi silencio, e continuei
passando o dever no quadro. Quando me virei de costas, saíram se
batendo com chutes e pontapés. O meu impulso foi ir para o meio da
briga, (apesar de os especialistas sugerirem que os professores se
afastem) e como eram pequenos, consegui segura-los. Assim que separei
os dois, o Luiz Carlos, um garoto de 12 anos e 1,20m começou a
implorar: “por favor professora, não me suspende, por favor, por
favor!”, muito insistente e quase chorando, me prometendo que não ia
mais fazer isso.

Nesse momento, a descontrolada era eu. Fiquei muito nervosa com a
situação, não sabia o que fazer. Não podia deixar o acontecimento
passar impunemente, mas também não podia deixar de me comover com
aquele toco de gente implorando para não ser punido, muito mais vítima
da violência do que o seu provocador. Segurei as lágrimas para não
chorar ali, na frente da turma, e logo em seguida fui para o banheiro,
os dois desceram para a orientação educacional.

Eu, que deveria ser o exemplo, a representante das boas ações, daquilo
que é certo, eu que passei mais de 20 anos estudando, me preparando
para o ofício, simplesmente não sabia o que fazer. Os anos da
faculdade, a quantidade absurda de conteúdos relacionados a seres
vivos, células, artrópodes, genética, vegetais, nada daquilo me era
útil naquele momento. Mesmo as matérias da educação, como sociologia,
psicologia, filosofia nem de longe tocaram em algum conteúdo que me
ajudasse a tomar alguma providencia naquela situação. Até o mestrado
em Ensino de Ciências e Saúde não me ajudou. Anos de estudo jogados no
lixo, é esse meu pensamento. Mal sabia eu o que estava acontecendo em
Realengo naquele mesmo momento, e que isso que eu estava passando “não
era nada” em comparação com a escola Tasso de Silveira.

Lembrei depois também da prova do concurso, que só avaliou
conhecimentos teóricos sobre essas matérias, e também dos exames
médicos e psicológicos que tive que passar para assumir o cargo. Em
nenhum desses momentos me informaram sobre como lidar com a violência
ou me avaliar se eu estava preparada para agir quando acontecesse na
minha frente. E, no entanto, como professora de ensino fundamental do
estado do RJ posso relatar inúmeros casos de violência e agressão que
ocorrem diariamente nos corredores e espaços mediadores da escola,
dentro dela ou nas proximidades. Os palavrões, xingamentos,
provocações, depredação do espaço e do material dos próprios alunos,
são ocorrências diárias dos espaços escolares públicos do RJ. É
impossível dizer exatamente quando foi que isso tudo começou para
acabar com a tragédia de hoje. Mas também seria muito ingênuo
acreditar que isso nunca aconteceria. É que a gente não gosta de
alimentar os maus pensamentos, e fica acreditando que “isso não vai
acontecer”, sem plantar as sementinhas no presente, no aqui agora. E
aí o pensamento positivo não faz milagre sozinho. Enquanto a violência
for ignorada e omitida nas escolas, ela se perpetuará e se dissipará
em níveis que preferimos não imaginar. Como essa tragédia de hoje.

E nós até podemos refletir sobre as condições das escolas de hoje no
Rio. Podemos e numerar os problemas. Falta infra-estrutura. As escolas
não têm carteiras para todos os alunos, e muitas turmas são
aglomeradas em salas muito cheias. Falta material, equipamentos e às
vezes, falta até telha e chove na sala de aula, como presenciei uma
vez, dando aula. Faltam professores e funcionários no quadro regular
das escolas, sobrecarregando os que estão ali trabalhando com turmas
superlotadas, ou acumulo de funções, impossibilitando um bom trabalho.

O nosso governo estadual tem a cara de pau de pagar R$ 680 líquidos de
piso salarial para os professores. Só para comparar, qualquer
atendente de telemarketing ganha mais do que isto, visto que recebe
além de um salário mínimo, cerca de 530 reais, mais vale transporte e
alimentação. Nós não recebemos esses auxílios.

Mas o mais grave não são esses dados. São as conseqüências para os
alunos: baixo rendimento, indisciplina, má formação dos alunos e
altos índices de evasão. As estatísticas apontam que cerca de 80% dos
estudantes de classe baixa evade antes da conclusão do ensino
fundamental. A avaliação do ensino vai de mal a pior, e índices como o
SAEB apontam o RJ com um dos piores resultados no ranking nacional.

Mas o x da questão perpassa a questão estadual. Atualmente a escola
não consegue formar ninguém, e mesmo quando forma, forma o que? Que
tipo de pessoas são formadas quando tem um bom rendimento escolar?
Será que a conclusão dos estudos conduz necessariamente a um futuro
digno, a uma profissão, a inclusão social, a um emprego e um salário
decente?

Provavelmente por isso, os alunos se inspiram em outros tipos de
"heróis", que estão longe de serem realmente uma boa saída. Por
exemplo, faz pouco tempo que aquele goleiro Bruno assassinou a
namorada de uma forma brutal. Essa é uma tragédia anunciada que deve
ser tida como o modelo daquilo que os nossos alunos/filhos admiram. O
sonho de qualquer garoto em idade escolar é se tornar jogador de
futebol e ganhar muito dinheiro (que nenhum professor pode sonhar em
ter). O sonho das garotas, por sua vez, é se tornar modelo/atriz, e,
na medida do possível, engravidar de alguém com condições financeiras
para sustentá-la para o resto da vida. Duas pessoas jovens, que ao
menos para os nossos padrões de “vida boa” teriam tudo para serem
felizes, gastarem seus dinheiros e criar o seu filho simplesmente
acabaram com suas vidas, mostrando que isso não é suficiente para o
final feliz . Esse outro crime tão cruel, revela simplesmente para
onde estamos encaminhando nossas crianças, uma vez que dentro da
escola elas não encontram referencias felizes, ou modelos de vida que
lhes inspirem (como os jogadores e modelos, que mesmo sem estudos,
conseguem muito mais dinheiro do que nós, pais e educadores, meros
mortais). Que tipo de sociedade estamos criando? Que modelos
oferecemos para nossos filhos/alunos? Em quem eles podem se inspirar?

Em se tratando de vida acadêmica, desde o ensino fundamental até as
pós-graduações, cada vez mais inclui-se conteúdos específicos,
aumentando o currículo. As escolas e universidades são avaliadas como
boas quando seus alunos passam por testes teóricos dificílimos, que
avaliam a aquisição de conteúdos. Mas não se discute como se tratar
de questões transdisciplinares, como respeito, cidadania, violência,
trabalho. Não se discute a diferença da quantidade de horas de aula de
cada disciplina, que gera um desequilíbrio, privilegiando algumas,
como ciências, português e matemática, e negligenciando outras tão
importantes quanto, como artes, sociologia, história e filosofia. Não
se discute as práticas, as maneiras de fazer, os métodos de ensino e
de avaliação. Apenas submete as pessoas a provas de raciocínio lógico
e extrai-se um índice baseado na média de acertos. Todos os
sentimentos, a auto estima, a violência, a tolerância, a amizade, o
ambiente, os sentimentos de pertencimento, a organização coletiva, a
mobilização e discussão de temas contemporâneos, tudo isso fica de
fora. De fora das avaliações e de fora das preocupações.

Obviamente os governantes se envergonharam desse índices, que andam
baixíssimos, e reunidos em seus gabinetes tomaram decisões, a meu ver,
equivocadas, para "solucionar o problema", sem consultar ou
compartilhar essa questão com os profissionais que pensam e atuam na
educação. Para eles, “solucionar o problema” parece se restringir a
melhorar os números das avaliações, e não refletir sobre o cotidiano
escolar e a base estrutural do problema. São remediações que podem até
forjar uma melhoria no algarismo do índice, mas que efetivamente não
contribuem para a melhoria do ensino.

Agora que um crime hediondo como esse, o Massacre da escola Tasso de
Silveira vêm a tona a única conseqüência desse descaso histórico com a
educação: o assassinato de 12 crianças e mais 11 vitimas em
atendimento, todos com menos de 14 anos.

Passado o choque provocado pela exploração do caso na mídia, é
preciso que as pessoas despertem para a gravidade do caso, não apenas
penalizando o autor dos disparos, mas sim alertando para o abandono
que a educação sofre no Rio de Janeiro e em todo país. A culpa
individual não soluciona em nada o problema, e seguir adiante sem
pensar em todas as facetas da educação que levaram a este episódio é
tapar o sol com a peneira e não observar com atenção a realidade em
que vivemos.

A escola é o lugar do conhecimento, de transformação, de formação de
cidadãos, de seres humanos. Todos passamos por ela, e esperamos que
nossos filhos, netos, amigos ali se formem, para se tornarem
professores, médicos, enfermeiros, advogados, enfim, profissionais e
cidadãos que atuem na sociedade, pela sociedade.

Quem já ligou a televisão antes das 11h da manhã e acompanhou a
programação infantil, deve perceber a quantidade de desenhos violentos
que são oferecidos diariamente para os pequenos. Não se mostra
referencias de paz, afeto, integridade, mas sim, de heróis mutantes,
superdotados, ou simplesmente ricos, lutando contra monstros, pessoas,
as vezes até países. Se formos falar dos filmes, então, mais uma
enxurrada de violência gratuita e valorizada, sequencias de mais de 10
minutos de tiros e efeitos especiais que transmitem a mensagem: “olha
como a violência é bela, que herói maravilhoso conseguiu matar um
exercito inteiro sozinho,” e permanecemos em silencio com nossos olhos
vidrados na tela esperando o final bem sucedido de um único
personagem. Não quero dizer que a televisão seja exclusivamente
culpada, mas que exerce uma influencia forte sobre os jovens, isso não
pode ser ignorado. Quem nunca saiu excitado de uma sessão de cinema,
com os “atos heróicos” vividos durante 1h30 de sangue e tiros? Quem
nunca se imaginou atirando na fila do banco ou detonando bombas para
encontrar uma vaga no estacionamento? A nossa cultura está cada vez
mais vazia de bons exemplos e valores, e cada vez mais perdida na
formação dos nossos sucessores, nossos filhos, netos, bisnetos.

Eu creio que isso é o pior: essa sensação de que não podemos fazer
nada, de que somos poucos e mortais diante do "sistema", da
organização geral e maior que rege todos os problemas. Temos que lutar
contra o medo, a inação e o conformismo, e catalizar esse sentimento
de frustração, revolta e inseguranças em ações para a melhoria das
escolas de nosso país.

Vamos discutir a educação, vamos pedir às autoridades que compreendam
que a educação é uma estrutura base crucial para o desenvolvimento da
nação, que não pode ser remediada com medidas superficiais e de curto
prazo. Precisamos de mais verbas para a educação, mais profissionais,
mais infra-estrutura, mais livros, mais amor.

Vamos fazer com que essas crianças nao tenham morrido a toa, vamos
impedir que mais inocentes sejam assassinados, nao apenas a tiros, mas
diariamente massacrados pela organização social a que pertencemos.

Professora Maíra Baczinski
Niteroi, 7 de abril de 2011."

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